“O Herói Provisório” é o primeiro romance da escritora paranaense Etel Frota. É uma ficção ambientada em Paranaguá (PR), com passagens pelo Rio de Janeiro, Cunha e Lisboa. Transcorre no século dezenove e tem como pano de fundo o episódio Cormoran, fato histórico acontecido em 1850, quando a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel, abriu fogo contra um cruzador inglês que rebocava três navios brasileiros apreendidos no porto paranaense com indícios de que tivessem sido recentemente usados no transporte de escravos africanos.
Era um tempo em que a Inglaterra assumia a liderança do combate ao tráfico negreiro. Navios de Sua Majestade policiavam os oceanos, e arvoravam-se o direito de apresar embarcações que traficassem escravos, sob qualquer bandeira. O Brasil tinha uma clara posição procrastinadora a respeito. Vigorava uma lei que declarava livre todo o escravo estrangeiro que entrasse em território brasileiro. Essa lei – promulgada em 1831 para satisfazer as pressões da Inglaterra – nunca ‘pegou´. Foi uma lei para inglês ver – vem daí a expressão.
Foi nesse cenário que, na manhã de 29 de junho de 1850, o Slooper HMS Cormoran, comandado por Herbert Schomberg, adentrou a baía de Paranaguá – à vista e aparentemente com a anuência da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres – e abordou os navios ali atracados. Informou às autoridades da alfândega que, em nome de Sua Majestade estava procedendo ao arresto de três embarcações, nas quais encontrara evidências de que se prestavam ao tráfico negreiro.
Inflados pelos poderosos locais – cujos interesses econômicos e políticos sofriam um sério revés com a ação inglesa – as tripulações dos navios e cidadãos de Paranaguá se dirigiram à Ilha do Mel, levando as munições e equipamentos com que, em uma noite, reergueram a fortificação sucateada. Pediam providências contra a ação britânica ao comandante da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, o Major Joaquim Ferreira Barbosa. Relutante a princípio, o militar acabou cedendo à pressão e comandou o ataque ao Cormoran, no dia seguinte, quando o navio deixava a baía de Paranaguá, levando os três brigues apresados. Foi um combate rápido, do qual resultou um marinheiro inglês morto e dois feridos. Dois dos brigues brasileiros foram avariados. Schomberg incendiou os navios atingidos, à vista da Fortaleza, seguindo viagem e despachando o único navio que conseguiu realmente apreender para Santa Helena.
A ação, saudada como heroica – Joaquim Ferreira Barboza foi enaltecido pelo presidente da província [à época, o futuro Paraná ainda era parte da Província de São Paulo] – não tardou em se desdobrar em consequências diplomáticas. A responsabilidade pelo incidente recaiu inteiramente sobre o herói inaugural, que acabou por responder a conselho de guerra. Dispensado do exército, terminou seus dias anônimo, doente e desonrado.
[Menos de três meses após o acontecido, foi aprovada a Lei Eusébio de Queiroz, novamente proibindo o que já era em tese proibido; desta vez a lei “pegou”.]
A autora, após 14 anos de peregrinações e crises de rinite com os manuseios necessários à pesquisa, cria – por debaixo do uniforme de soldado – um homem Joaquim, sobre quem existem muito poucos dados biográficos. Inventa-se uma infância, em Cunha (SP); espia-se sua participação na Batalha de Catalán, na Guerra Cisplatina; na Paranaguá do século XIX, ele é posto a conviver com outras figuras históricas e ficcionais. Quem a tudo assiste é Frei Tristão, dominicano chegado de Portugal, aportado meio por acaso em Paranaguá, um personagem completamente inventado. Outra figura proeminente da história é a escrava Ignácia, personagem real, porém deslocada de seu tempo e espaço para vir habitar este enredo, dando voz e expressão àqueles em cujas peles a história inscreveu – literalmente – seus desmandos e crueldades.
“O Herói Provisório”, embora peça de ficção, traça – a partir das relações entre pessoas – um vigoroso painel histórico e humano, um inquietante borramento das fronteiras entre a historiografia oficial e a narrativa de invenção.