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Artigo oitavo, poesia escrita, falada e cantada


Prêmio Saul Trumpete – Melhor encarte de CD e Melhor Letra de Canção (da Semente/ Quatro Acalantos), 2002

2002
Produção e direção musical: Rodolfo Stroeter
Músicos: André Mehmari, Caíto Marcondes, Lydio Roberto, Rodolfo Stroeter, Sergio Justen, Teco Cardoso e Webster dos Santos.
Cantoras: Cristina Lemos, Liane Guariente, Mônica Salmaso, Nice Luz e Suzie Franco.
Vozes faladas: Thiago de Mello, Cacá Carvalho, Etel Frota

Roteiro

1 Prólogo

Cacá:
Era uma vez um poeta
que inverteu a profecia
apunhalou a poesia
quando a coitada dormia
e foi ser destro na vida

Etel:
Não te queria, minha poesia
exposta a olhos e dentes
salivas e tesões
São minhas as tripas
que espalhas no morgue
pelos balcões

São minhas as dores
que te afligem
donzelinha meretriz
Angores de mãe de noiva
temores de mãe de virgem
pudores de mãe de miss

Enfim
bates-me a porta
na cara do peito
Ganhas a rua
Despudorada
louca e bela

Furtiva e nua
te espio
pela janela

Pressinto
a madrugada
de te esperar
No escuro
Calada

>>>
Meu escrito
é paixão em estado bruto
sem rima
forma
ritmo

Meu escrito
é fogo
vulcão
hemorragia
Ainda está morno

Meu escrito
é urgente
como sede
fome
tesão
Às vezes fede
como suor
sangue
sêmen
e todos os humores incontidos da paixão

Meu escrito é demente
como os loucos que riem pelas ruas
e têm medo de corrente
<<<:

Persigo a palavra
que expresse um sentir
Esvai-se o sentir
sobra-me a palavra

Imóvel
banal
desajeitada

Passarinho preso

Ah, a palavra do poema
e a da prosa dos poetas…
Essa sabe voar!

Nega-se à tradução
Segue os caprichos
e volteios do sentir
Entrega-se às brisas e tempestades

Goza
louca furiosa
na mansidão de mornos ventos
No furor dos elementos
louca mansa
dança

Conhece os mapas da alma
mas navega sem rumo
sem timo
sem norte

Não busca pena
ou registro

E acontece

Possessão
Sangue e delírio
Parto com dor
no meio da madrugada

>>>

As rimas me nascem
dos intestinos
nunca das gramáticas

Vísceras estranhas
enigmáticas
parideiras e sintáxicas entranhas

Cacá:

vísceras / estranhas / parideiras / sintáxicas / entranhas…

2 das Dores

Cacá:

Coisa mais feliz da vida é filho
quando nasce
mesmo quando nos falha a anestesia

Coisa mais bonita da vida é filho
quando ri
mesmo enquanto troca os dentes

Coisa mais triste da vida é filho
quando morre
por mais e sinceramente que se acredite na eternidade

Etel:

Deixa agora que eu te conte
dos caminhos onde andei
o chão de terra batida
estrada de morte e vida
tanta curva, tanta ponte
tanta noite mal dormida
tanto sonho que sonhei

Bem cedo saí de casa
dona então do meu destino
mera ilusão de vôo e asa
Fiz, desfiz, aconteci
reneguei pai, mãe, família
fui largando no caminho
a minha sina de filha

Dois filhos então pari

Conheci o riso e a dor
noite fria, tarde calma
e aquele buraco na alma
por onde nos entra o amor

Conheci, pois, a poesia
essa tirana dolente
manhosa, mas exigente
que nada deixa passar
que me emprenha de alegria
mas também me faz chorar

Liane (cantando):

Numa dobra do caminho
quando andava distraída
me pegou de jeito a vida
A noite nem bem chegava
primavera anunciava
foi-se embora meu menino

Foi-se embora sem um ai
nem um pio, passarinho
sopro, cantiga, um anjo
que passou pelo meu ninho
Tão fraco, pequenininho
tão forte, inteiro, haikai

Etel:
Para a frente só caminho
pouca sombra, muita estrada
poeira quando não chove
Meu peito anda murchinho
bem doente de tristeza
mas ainda se comove:
a vida é pura beleza
tanta coisa ainda se move!

Tem a garganta, que canta
tem o pé, que ainda caminha
tem a mão, que cura o corte
saudade de companhia
A dor então se levanta
e rouba um verso da morte

Deixa agora que eu te fale
desta minha trajetória
esta história não tem fim
não tem fim nenhuma história

Pura ilusão, desatino
caminho querer traçar
no meio de tanto chão
o caminho é o caminhar

3 Dolor

Nice (cantando):

O que move esta mulher?
De onde vem esta mulher?

Vem de longe
Vem tangida por grileiros
Vem do Éden, decaída
De Eldorado, Carajás

Tatuada na fronte a profecia:
-Entre dores parirás!

Numa rua de Naim
canta uma canção
pro menino afogado

Louca e tão pálida
ajeita o véu
engole a lágrima
vinagre e mel
No regaço jaz
morto curumim
Semeia Abel
chora Caim

O que mata esta mulher?
Onde sangra esta mulher?

Sangra por seus dez buracos
verte leite pelos peitos
pelas veias
pelo ventre que pariu

Morre de morte matada
de morte morrida
Seus meninos que enterrou
são sementes plantadas
na terra encharcada
São frutos
romãs
E na primavera
cobra de vidro
recolhe os cacos
dentro do peito
um por um, assim
vai gerando um deus
para embalar nos sonhos seus

E tem nome esta mulher?
Como chama esta mulher?

Lancinante amor
flor de dor, Dolor…


4 Artigo oitavo

Thiago:

“-Gravo estes versos, só para que Etelvina Frota saiba da felicidade que me dá com seus poemas…”

Etel:

Tenho-te à guisa de um deus…
E de repente me vejo
transportada num desejo
sentada junto dos teus

Thiago:

(Artigo oitavo)
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor

Etel:

Junto dos teus te contemplo
nesse amazônico templo
(Me perdoa a rima dura
de cintura. No entretanto
medida para este canto
ela recende a ternura
e é também deslumbramento)

Assim, entre os teus sentada
penso em tua caminhada
penso em minha caminhada
estranhas trilhas do amor
No belo e tão vasto oceano
que atravessei quase a nado
pra te trazer uma flor

Thiago:

(Artigo quarto)
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento
como o vento confia no ar
como o ar confia no campo azul do céu

(parágrafo único)
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Etel:

Faz escuro, e enquanto cantas
um rio escorre em meu peito…

Thiago:

(Artigo sexto)
Fica estabelecida, durante todos os séculos da vida,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Etel:

Contemplo-te junto aos teus

Teus amores, tua pira
lira de teus setent’anos
plenitude que me inspira
Recolho dentro do peito
antes que dê meia-noite
antes que o encanto se acabe
o que à minha lira cabe

Thiago:

(Artigo terceiro)
Fica decretado que, a partir deste instante
haverá girassóis em todas as janelas
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro
abertas para o verde onde cresce a esperança


Etel:

Mormaço dessa floresta
cheira a madeira de lei
Encharca-me de alegria
este ofício de aprendiz
do carpinteiro do verso
cantador da dor, da festa
que pra mim mesma inventei

Faz escuro, e enquanto cantas
um rio escorre em meu peito

Contemplo-te por inteiro
sentada junto dos teus
Encanecido barqueiro
chama rubra no braseiro
tão sofrido e humano deus

Thiago:

(Artigo final)
Fica proibido o uso da palavra liberdade
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio
ou a semente do trigo
e a sua morada será sempre
o coração do homem


5 da Semente

Mônica (cantando

Chegou a noite, dorme meu curumim
lá vêm os silfos, duendes do jardim
Vem salamandra, iara vem
acalantar o sono do neném

Pastor, ovelha
abelha, mel
musgo, nascente
nuvem lá no céu


>>>

Clara
pedra tão rara
olhos azuis

Clara
pedra tão rara
gema de um ovo
prenhe de luz


Etel:

Sê bem-vindo, menino,
com tua bagagem de futuro
Bem-vindo o lume
pequenino
que deflora o quarto escuro
E que bem-vindas sejam
tuas cólicas,
tuas febres.
Bem-vindos teus suores
Bem-vindo teu espasmo
e nossos temores

Bem-vinda a líquida certeza
que nos chega com teu choro,
com tua voz:
água, que é foz,
é também fonte
nascente de nós

Bendito, fruto
de nosso ventre sagrado
sangrado na poda
rebrotado na esperança

Sê bem-vindo,
João Pedro
Estrela
Criança

Mônica (cantando):

Clara
pedra tão rara
olhos azuis

Clara
pedra tão rara
gema de um ovo
prenhe de luz

>>>

Miguel, Metatron, arcanjo Gabriel
todos os tronos, anjos lá do céu
espraiam luzes, logo já vêm
acalantar o sono do neném

Traz um perfume
favo de mel
facho de fogo, anjo Rafael

<<<

Clara
recaptura
minh’alma
cansada
Na fundura pura
de tua
mirada

Mônica (falando):

à semente
basta ser
sem promessa
sem intenção
sem cálculo
sem lei de probabilidade
somente ser
semente
somente

6 Circadiana

Etel:

Circulam em mim sete humores
sabores, cheiros e cores

Tem um redondo, doce e cor-de-rosa
que sabe cantigas de ninar
sacia-se na pele macia das crianças
dorme pesado
queima-se ao sol, ri de qualquer besteira
é generoso
leite de peito, florada, saúde.

Tem um que é vinagre e fel
Vendetta

Tem um que é muito bem comportado
supermercado, trânsito
bons dias!, gentilezas
me ajuda a ganhar a vida
(trottoir da alma)

Tem um que é pura luxúria
lígua, tesão, gemido
(e que fica guardado
numa caixinha de veludo vermelho
no fundo da gaveta
no meio de discretas calcinhas cor de champanhe)

Circulam em mim sete humores
mandam em mim, fazem lei.
Uns conheço. Uns se escondem.
Sobre estes uns nada sei.

>>>

Sonho algas e serpentes.

Tua mão de explorador
Meus lábios entre teus dentes

Sonho então tua língua afoita
estudando minhas dobras.

Sonho lagartos e cobras.

Sonho com um orgasmo louco
gemido obsceno e rouco.

Sonho todas as volúpias.

Teu falo, triste e cansado,
jaz, inerte, ao meu lado.

7 Incesto

Etel:

Nem sei se te vi…
Suspeitei tua imagem
logo ali

Já vem e me lambe o desejo
labareda
sem pejo

Arrepio
Quase um gozo
Tormentoso
cio

Encanto que espera
na primavera
é louca paixão
no verão

Triste desejo
sem dono
sem fim
no outono
de mim

Cristina (cantando):


Ai, menino
não vês que te vejo
franzino menino
escondido a espiar?
Água ligeira
levou meu suor
e poeira
(Lambe-me a pele)

Saciada de rio
te aninho em meu peito
Tem cheiro de mato
teu casto desejo

Ai, vês esta blusa molhada?
Gruda-me ao peito
Sufoco
(Menino, menino, menino,
tiras-me o ar)

Ai, de frente para o sol
caminho
volto pra casa
Poente.
(Ah, me queimam as coxas
teus olhos de anjo)

Menino, menino, menino,
volto amanhã
Te espero, menino
pequeno, franzino menino
aí escondido
a me espiar

8 Espírito Santo

Cacá:

A cada poema
que te brota na alma
e que sufocas
brota uma flor
beijinho
na beira do rio.

Vou lá, vejo
e te sorrio.

A cada lágrima
que engoles
a cada saudade
de que te distrais
vem uma secura
e teu olho arde.

Vem uma quentura
e me embala a tarde.

A cada palavra
que me sonegas
um anjo vem
e me sopra a nuca
bem ali
onde nasce o arrepio.

Tu te arrepias
triste
de frio.

Pois que poesia
saudade
florzinha
e bafo no cangote
vêm a ser
generosidades
da mesma nascente.
Brotos tão pequenininhos
quanto subversivos
que se desprendem
e buscam
tinhosos
a egrégora.

Passam por aqui
no caminho.

Compaixão de tua sina
eterno menino contido.
Inútil dedo
na rachadura dos diques.

>>>

Não cabemos neste espaço.
Nem ele nos cabe.
Aqui não sou. Não estou.
Nem tu és.

Duas chamas,
duas penas,
duas línguas.
Verbo, carne e labareda.

Morada da terceira pessoa.

Não eu,
nem tu.
Tampouco nós.

Mistério da santíssima trindade.

>>>

contentamento de agora:
saber o sabor da espera
da fruta enquanto matura

>>>

Somente depois que a palavra
puída de tanto uso
(e de tanta lavagem desnecessária)
estiver destituída

Saciada a urgência dos sentidos
ventre pacificado
a ânsia, sonolenta
pedir licença e fôr dormir

É que poderá meu umbigo
tocar teu umbigo
cicatriz com cicatriz
mansamente, sem vertigem

Nossa alma estará então serenada
e poderá ser, afinal
a alma do sangue do poente
a alma do som da avemaria
a alma da alma da poesia

Assim
desde sempre
para sempre
eternamente

9 Penélope

Etel:

Depois de tudo terminado
persistem na sala certos cheiros
Nossas mãos sujas
do sangue que verteu das palavras
ditas pela metade
ou mal compreendidas

Vísceras espalhadas
Vez por outra
ainda um certo espasmo

Ocupemo-nos agora
com a limpeza
e esterilização

Água sanitária, sabão
muita água, panos limpos

Tratemos de recolher esta massa sangrante
e devolvê-la à sua cavidade
Revisceração

Limpemos a mesa, o chão
as paredes, o teto
Os instrumentos cortantes
perfurantes
e os lacerantes

Descartemos estas luvas
estas roupas contaminadas
lancemos tudo ao incinerador
(não nos esqueçamos de espalhar
as cinzas bem longe daqui)

Pronto
Está tudo muito limpo
um cheiro de nada no ar

Quem chega agora
desavisado
não pode supor
que aqui
acabamos
a autópsia
de uma paixão

Suzie (cantando):

Penélope pelo avesso
retomo meu bordado verde-água
enquanto espero serena
que meu amor na distância vá
avesso
se esfume em mar de aquarela…

10 Epílogo

Etel:

Pra tudo aquilo que importa
há que se abrir a comporta
há que existir o momento
de se dar ao movimento
há de haver uma razão
prá que ocorra a combustão

Cacá:

(Há também, e sobretudo
que não se furtar ao mudo
sofrimento. Por inteiro
revolver esse braseiro
até que se queime tudo
que não é essencial
Reste no peito-cadinho
só pedra seiva metal)

Etel:

Pra tudo aquilo que importa
quando se abriu a comporta
pra quem soube se entregar
basta saber esperar
não há muito o que fazer
A vida há de prover

Cacá:

Era uma vez um poeta
que inverteu a profecia
apunhalou a poesia
quando a coitada dormia
e foi ser destro na vida


Etel:

Mas se é do poeta um dia
o outro é da poesia
(de morta ela só fingia)

Levantou
lambeu-se onde ainda doía
espiou por uma fresta
da alma daquele poeta
A tarde era calma. Chovia

Eis, então, que num repente
num mais fundo respirar
rompe-se velha corrente
e a poesia num piscar
inunda, feito torrente
o chão daquele lugar

Escorreu pela sarjeta
com a chuva que caía
Dissolveu, ganhou a rua
encharcou toda cidade
e a despeito do poeta
reinventou a profecia…